Desenvolvimento de Sistemas Composicionais

Projeto de pesquisa do Grupo MusMat
Liduino Pitombeira, docente responsável
Carlos Almada, docente
Roberto Macedo, doutorando
Ana Miccolis, doutoranda
Filipe Rocha, doutorando
Pedro Proença, mestrando
Vinicius Braga, iniciação científica (PIBIC)

Idioma alternativo para processo seletivo (Doutorado): francês

Introdução

As atividades de gerenciamento de parâmetros musicais, no âmbito composicional, podem ser tratadas tanto através de procedimentos intuitivos (composição linear), como através de técnicas de planejamento composicional. [1] A complexidade crescente do agenciamento paramétrico, em particular se consideramos uma perspectiva pedagógica, aliada às possibilidades de interação com técnicas diversas de produção de sonoridades (espectralismo, intertextualidade, ultracomplexidade, retórica, contornos etc.), torna atual a necessidade de um tratamento formal. [2]

A formalização de sistemas composicionais ainda é um campo pouco explorado, principalmente na produção acústica instrumental e vocal, e especialmente sob o viés do Pensamento Sistêmico, embora no campo da produção eletroacústica e algorítmica haja produção bibliográfica disponível. [3] O uso informal do termo “sistema”, geralmente como sinônimo de “maneira de compor” ou simplesmente associado a sistemas computacionais auxiliares ao processo composicional, é algo corrente do âmbito acadêmico. A formalização desse processo, bem como uma definição formal para o termo “sistema composicional” foi nossa contribuição inicial na busca de um novo olhar sobre o assunto, por ocasião da orientação da dissertação de mestrado de Flávio Lima (2011), na qual se encontra uma primeira proposta de definição do termo. [4]

Os sistemas composicionais trabalham em conjunção com outros processos composicionais. No caso de associação da teoria dos sistemas composicionais com a teoria da intertextualidade [5], por exemplo, podem-se distinguir diferentes níveis de abstração, desde uma abordagem literal até representações puramente estruturais. Nesta última, onde a desterritorialização [6] dos intertextos é um fato marcante, o sistema composicional se constitui em uma ferramenta fundamental para garantir a coerência estética e racional da obra.

Propomos, neste projeto de pesquisa, o desenvolvimento de sistemas composicionais, tanto modelados (estudo exaustivamente já realizado em dois projetos anteriores) [7] como originais (sobre os quais o autor já tem produção bibliográfica consolidada). É nossa hipótese que, ao planejar uma obra, o compositor lida, consciente ou inconscientemente, com um aglomerado de objetos [8] e de relações entre estes objetos, em nível primitivo, difuso e generalizado. Tais objetos genéricos e suas inter-relações se constituem nas estruturas que denominamos sistemas composicionais, as quais se tornam efetivas a partir da formalização. Na próxima seção deste projeto daremos uma visão panorâmica da fundamentação teórica e dos procedimentos metodológicos que serão empregados durante a pesquisa.

Fundamentação teórica

Nesta seção, detalharemos os diversos tópicos que constituem a fundamentação teórica, bem como forneceremos exemplos dos procedimentos metodológicos a serem empregados durante a pesquisa. Esta seção será dividida em diversas subseções, nas quais examinaremos os conceitos de Sistemas (do ponto de vista geral), Sistemas Composicionais, Perfis Composicionais e Planejamento Composicional.

Sistemas

O ponto de partida para essa pesquisa se inspira em conceitos fundamentais da Teoria Geral dos Sistemas, que forma juntamente com a Cibernética e a Teoria da Complexidade um corpo teórico que se denomina Pensamento Sistêmico. A Cibernética tem como ponto central a realimentação, e a Teoria da Complexidade estuda estruturas complexas que resultam quando o número de elementos e de interações em um sistema estão além da capacidade de compreensão de um observador.

São diversas as definições de sistema. Klir (1991, p.4-5) formaliza uma definição de senso comum, extraída do Webster’s New World Dictionary: “a set or arrangement of things so related or connected as to form a unity or organic whole”. A Eq. 1 expressa essa definição de maneira formal.

Eq. 1                                     S = (O,R)

Nesta definição formal, S representa o sistema, O, o conjunto de objetos e R, o conjunto de relações entre esses objetos. A partir dessa definição se observa que um sistema lida simultaneamente com objetos e relações. Meadows adiciona a essa definição um outro componente: a função (MEADOWS, 2008, p.11).

Já o formulador da Teoria Geral dos Sistemas, Ludwig von Bertalanffy (2008, p.84), nos fornece a seguinte definição: “Um sistema é um complexo de elementos em interação”. Bertalanffy propõe uma hierarquia dos sistemas, e situa a música, assim como as artes em geral, e a linguagem, em um nível hierárquico denominado Sistemas Simbólicos, nos quais os modelos se organizam a partir de algoritmos simbólicos ou, como denomina Bertalanffy, a partir de “regras do jogo” (idem, p.53).

Uma definição de sistema composicional, examinada na próxima seção, se constrói, portanto, a partir do amálgama destas perspectivas: regras do jogo, elementos em interação, conjunto de objetos e relações com uma função determinada.

Sistemas Composicionais

Definimos Sistema Composicional como “um conjunto de diretrizes, formando um todo coerente, que coordenam a utilização e interconexão de parâmetros e materiais musicais, com o propósito de produzir obras musicais” (PITOMBEIRA, 2015, p.69) . Nessa definição, observamos a presença de objetos (parâmetros e materiais musicais), relações (interconexão) e função (obras musicais).

É importante salientar que tais objetos são entidades arquetípicas e, portanto, desprovidas de particularidades. Ao conferir particularidade a tais objetos definimos uma estrutura denominada Perfil Composicional. Partindo de um sistema composicional, chega-se ao perfil composicional através de procedimentos de planejamento composicional. Em outras palavras, enquanto um sistema composicional é formado por objetos genéricos e relações, um perfil composicional apresenta as mesmas relações aplicadas a objetos específicos.

Os sistemas composicionais podem ser, quanto à sua natureza, originais ou modelados. Sistemas composicionais modelados são construídos a partir da modelagem sistêmica de outra obra (intertexto) e, como já mencionamos, foram exaustivamente estudados em dois projetos anteriores. São sistemas hipotéticos, uma vez que propõem uma teoria de funcionamento para determinada obra que não foi necessariamente a mesma teoria articulada pelo compositor durante sua criação. Neste projeto continuaremos a estudar os sistemas modelados , mas incluiremos também os sistemas originais, ou seja, sistemas estruturados sem associações musicais prévias com outra obra musical.

Quanto à sua arquitetura interna, os sistemas composicionais podem ser abertos, semiabertos ou retroalimentados. Nos sistemas abertos, materiais e parâmetros são inseridos e manipulados. Um exemplo desse tipo são os sistemas intertextuais, largamente estudados em Lima (2011). Nos sistemas semiabertos, os materiais são produzidos através de procedimentos internos, ou seja, não se faz necessário fornecer input. Um exemplo desse tipo são os sistemas aleatórios, como os que foram utilizados por Cage (1961) em Music of Changes. Nos sistemas retroalimentados, os dados de saída entram novamente no ciclo gerando saídas complexas. Um exemplo desse tipo são os sistemas caóticos.

Um sistema composicional trata de maneira formal os critérios de organização e relacionamento entre eventos musicais. Quando estruturamos um conjunto de objetos musicais a partir de algum critério generalizado (relação entre figurações rítmicas, alturas, ou mesmo regras de ordenação), este conjunto se configura como um sistema composicional. Uma vez definido um sistema, suas particularidades organizacionais, suas características diferenciadas são descritas no que denominamos planejamento composicional dos eventos a ele associados, ou seja, as infinitas possibilidades de planejamento, conferirão características diferenciadas às diversas manifestações oriundas desse sistema.

Planejamento composicional

O Planejamento Composicional confere especificidade ao Sistema Composicional. Articula-se em três fases. Na primeira fase, denominada particularização os objetos genéricos são especificados. Por exemplo, se o sistema trata de contornos e especifica dois contornos genéricos (C1, C2) que se interconectam através da relação R, na particularização, uma possibilidade é C1 = <012> e C2 =<210>. Observe-se que os objetos, embora especificados, ainda se encontram em um campo abstrato, pois os contornos podem ser aplicados a diversos parâmetros de superfície. A segunda fase do planejamento composicional é exatamente a aplicação. Nessa fase os parâmetros de superfície são especificados. Por exemplo, o contorno <012> pode ser expresso pelas alturas Dó4—Ré4—Mi4 e o contorno <210> pelas alturas Si3—Lá3—Sol3. A última fase—complementação—consiste na inserção de valores paramétricos não declarados no sistema (ritmos, dinâmicas, articulações etc.).

Problema de Pesquisa

Como a formalização de sistemas composicionais (originais e modelados) pode contribuir para o enriquecimento metodológico da pesquisa em composição musical, em termos de pesquisa de base e pesquisa aplicada?

Objetivos

• Aprofundar os fundamentos teóricos associados ao desenvolvimento de sistemas composicionais originais e modelados
• Produzir textos teóricos sobre sistemas composicionais.
• Produzir obras musicais a partir de planejamento composicional.

Justificativa

É nossa hipótese que a teoria dos sistemas composicionais pode se constituir em um fértil campo de estudos resultando em reflexões profundas sobre o fazer composicional bem como em aplicações práticas que fomentem a geração de repositórios e relações composicionais. Isso é especialmente importante do ponto de vista pedagógico, uma vez que encoraja uma prática de formalização composicional e um gradual desenvolvimento de uma voz composicional própria pelo exercício constante da reflexão pré-composicional.

Adicionalmente, consideramos que uma reflexão em torno da teoria dos sistemas composicionais deve envolver campos do conhecimento que tradicionalmente colaboram com a música, tais como a filosofia, a matemática e a informática. Tal envolvimento tem sido vivenciado em nosso cotidiano de pesquisa através da participação no grupo de pesquisas MusMat. O trabalho de pesquisa também será ramificado pela participação de alunos de pós-graduação do PPGM-UFRJ, alunos de Iniciação Científica e, eventualmente, convidados externos.

Metodologia

a) Desenvolvimento de sistemas composicionais originais e modelados.
b) Elaboração de planejamentos composicionais para os sistemas desenvolvidos no item a.
c) Composição de obras originais para diversas formações instrumentais.
d) Documentação de todos os passos da pesquisa na forma de artigos científicos, que serão enviados para congressos, simpósios e revistas acadêmicas.


Notas

[1] Mencionamos aqui as técnicas de planejamento composicional propostas por Straus (2005 e 2000) para a organização de classes de alturas, o planejamento de partições texturais (GENTIL-NUNES, 2009) e a Teoria do Design Composicional (MORRIS, 1988).

[2] Pitombeira (2012) menciona três modelos composicionais a partir de uma metáfora com três pensadores gregos: aristoxênico (intuitivo), pitagórico (racional) e ptolomaico (híbrido).

[3] Citamos, por exemplo, os trabalhos de Pressing (1988), Didkovsky (1997) e Di Scipio (1995)

[4] É curioso constatar que mesmo um texto como o de Lerdahl (1988), o qual explicitamente menciona o termo Sistema Composicional, não contempla uma definição para esse termo. A definição de Lima será atualizada mais tarde em Pitombeira (2015, p.69).

[5] Estudos exaustivos sobre a intertextualidade na música foram realizados por Straus (1990), Korsyn (1991) e Klein (2005).

[6] Utilizamos aqui esse conceito deleuziano de uma maneira metafórica e informal para indicar a quebra de vínculos a que um fragmento intertextual é submetido ao ser extraído de seu contexto original.

[7] O primeiro projeto, desenvolvido no PPGM, denomina-se Produção de obras originais a partir da modelagem sistêmica do primeiro Caderno de Ponteios de Camargo Guarnieri. O segundo, direcionado à Iniciação Científica, denomina-se Modelagem sistêmica a partir de gestos harmônico-melódicos de pequenas peças brasileiras. Ambos foram desenvolvidos entre 2015 e 2018. Nos Apêndice A e B, deste projeto, inserimos um quadro com as produções bibliográficas e artísticas associadas a esses projetos. No Apêndice C incluímos modelagens não relacionadas ao repertório delimitado nos projetos. Adicionalmente devemos citar produções de modelagens anteriores a esses projetos, tais como: Moraes e Pitombeira (2011,2012, 2013), Morais, Castro e Pitombeira (2013) e Medeiros, Santos e Pitombeira (2011).

[8] O termo objeto se inspira em Castrén (1999)

Referências

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